Hoje Jorge está indo embora, o coitado não suporta mais a sua bicicleta sem marchas, de baixa qualidade e cuja catraca pifou pedalando na praia. Depois do café da manhã, ele enfia a magrela no porta-malas, eu desmonto a roda da frente para fechar o porta-malas e a gente se despede. Boa sorte amigo! Para reconstruir-se ele decidiu fazer uma viagem de bicicleta após sua dolorosa separação, depois de vinte anos de casamento.

Eu me vejo novamente entregue a mim mesmo, mas isso não é ruim. Como de costume, as pessoas no hotel alucinam na minha magrela gordinha. Eu tomo algumas informações sobre a estrada a seguir, para sair da cidade e retomar minha pedalada diária.

Há uma estrada principal de saída, eu quero evitá-la ao máximo. Decido seguir ruas paralelas e bingo, caio em uma ciclovia. O Brasil fez um tremendo progresso nessa área nos últimos anos. Depois de alguns quilômetros, um ciclista vindo na outra direção me para, é Aramis, um cicloturista brasileiro que já pedalou em vários lugares do planeta. Próximo destino: Noruega. Ele me convida para sua casa, mas infelizmente ele tem suas obrigações para cumprir, vai para o trabalho, recomeçando o seu caminho e eu o meu.

Na saída da cidade me vejo obrigado a pedalar no acostamento da BR-277 por alguns quilômetros até a primeira saída em direção a Morretes, via PR-408, uma faixa, sem acostamento, mas felizmente muito pouco usada.

Este é o começo da "Estrada da Graciosa", que foi a primeira estrada entre o Planalto de Curitiba e o litoral.

Seu traçado é sobreposto à primeira estrada colonial "da Graciosa", aberta entre 1820 e 1853, construída em forma de trilhos, onde desbravadores, mineiros, caçadores e tropas de mulas transportavam todo tipo de produtos.

A sua importante ligação com os portos de Paranaguá e Antonina e o aumento de fluxos de tropeiros e comerciantes demandou uma melhoria e adaptações do caminho colonial, que deu origem à "Estrada da Graciosa", concluída em 1873. É a primeira estrada do estado do Paraná.

Hoje meu capacete está grudado na minha cabeça e a luz traseira da magrela acende e pisca para sinalizar minha presença aos motoristas.

São duzentos metros de ganho de elevação e 40 km até Morretes, que era o território dos índios carijós, etnia indígena que ocupava a região. A cidade histórica tornou-se uma charmosa cidade colonial com ruas de paralelepípedos e casas às margens do rio Nhundiaquara, com uma natureza privilegiada, cortada pela mata atlântica, rios, cachoeiras e a Serra do Mar Paranaense, uma das áreas verdes mais preservadas do Brasil, onde o pico do Marumbi atinge 1.539 metros.

Turistas da região vêm provar o Barreado, um prato típico da região, passear pelas ruas ao longo dos rios, onde estão instalados muitos artesãos, ou apreciar a beleza da estrada que atravessa a serra até Curitiba.

Enquanto pedalo à beira do rio, encontro Herondi, no auge dos cinquenta, que veio de Curitiba de bicicleta e planeja voltar no trem panorâmico. Bate papo, selfie habitual, encontro com Traro, um ciclista argentino viajando para o sul, e em seguida decidimos pedalar em direção à entrada da cidade, longe da agitação turística, para encontrar um lugar para o almoço. No restaurante, a garçonete lindíssima é de tirar o fôlego, nossos olhos estão cruzados e seduzidos, alguns pequenos sorrisos envergonhados, mas nada mais, ela está ocupada trabalhando e a estrada está me chamando, pois são só 13h e minhas pernas estão em fogo, prontas para o desafio da subida da serra.

Gentilmente, Herondi convida pelo almoço e me dá biscoitos com uma caixa de chocolate ao leite para eu seguir em frente, antes de despedir-se e ir à estação para esperar o trem. Se foi.

Eu atravesso a cidade novamente em direção à serra. Na saída da cidade, Anderson e sua família me param para bater papo e me colocam uma nota de 20 na mão quando os deixo.

Eu começo a pedalar de novo enquanto improviso rimas em português. Faltam pouco menos de dez quilômetros antes de atacar a subida da serra.

Algumas cachoeiras já estão alinhadas à beira da estrada, o barulho da água e seus diferentes sons são sempre agradáveis, depois das ondas, vem o canto da torrente e o farfalhar de pequenas nascentes que saem da floresta.

Uma última ponte de ferro sobre o rio e começa então a subida de 17 quilômetros na estrada histórica pavimentada. Sem saber, ainda tenho mais de mil metros de ganho de elevação com trechos acima de 11% de inclinação.

A floresta densa e verde é úmida, samambaias e árvores cobertas de musgo, líquens se entrelaçam, por aqui a Mata Atlântica é uma das mais preservadas do Brasil.

Vários mirantes ao longo do percurso, há quiosques para comer, refrescar-se com água de nascente para encher as garrafas, relaxar à beira do rio ou apreciar a vista. Toda vez que os motociclistas me ultrapassam me perguntam se minha bicicleta é elétrica.

A subida é longa, as curvas se sucedem, quanto mais me aproximo do topo, mais a neblina se instala, já estou procurando um lugar para montar minha barraca.

No topo não resta sequer meia hora antes do anoitecer, um caminho ao lado leva até as ruínas históricas. Vou para lá, mas estou de volta rapidamente porque, obviamente, não oferece uma boa opção de pouso e decido descer um pedaço de estrada para sair da serração.

Nem mesmo dez minutos antes da noite cair, um jovem ao lado da estrada me pergunta se preciso de ajuda, me diz que há algumas casas a menos de um quilômetro de distância.

Eu vou e de repente surge uma lagoa com um chalé de arquitetura germânica, alguém poderia pensar estar na Alemanha.

Além da propriedade há um homem no portão, o universo me dando uma opção, eu me aproximo e rapidamente pergunto se posso montar minha barraca em seu quintal.

Ele recebeu um francês de bicicleta há algum tempo, mas não falava português.

Wilkerson é de origem alemã, estabelecido no Brasil há várias gerações, ele me apresenta a sua esposa Marcia, da Bahia, e suas filhas. Eles são os donos, há alguns meses, da reserva Schwartz, uma propriedade magnífica no meio desta área preservada.

Will renovou um galpão atrás da casa e me convida para me instalar lá. Maravilha!

O mosaico de azulejo não está acabado, mas já está instalada uma tv a cabo, um luxo quando penso que até há pouco eu não sabia onde dormir. Cobertura de sobrevivência no chão, por cima o colchão e saco de dormir, vai ficar perfeito para passar a noite.

Desço para ver meus anfitriões. Pinhões, símbolo da região e frutos da araucária, estão cozinhando no fogão a lenha.

Wilkerson me explica que ele tinha um pequeno restaurante na cabana, ao lado da lagoa, mas decidiu parar e fazer apenas eventos únicos, a fim de ter mais tempo livre para sua família e seu projeto de desenvolvimento da reserva, reformas das edificações, criação de um acampamento no meio da floresta. Ideias não faltam e o lugar á perfeito para esse projeto, mas ele ainda tem muito trabalho pela frente. 

Saboreamos os pinhões assados acompanhados de mel e um copinho de vinho tinto, enquanto ele prepara alguns cachorros-quentes caseiros que coloca em seguida no forno.

À noite, o pai dele se junta a nós com algumas pizzas debaixo do braço, seguido por um amigo que me convida para uma próxima semana, mas eu já estarei longe.

Depois do jantar, os celulares são consultados para obter informações sobre diferentes frutas e sementes. "Will" me dirá mais tarde que quer desenvolver plantas e remédios naturais nos campos, assim como os mais velhos faziam.

É hora de deixar a pequena família, voltar ao meu cantinho e encontrar o Deus do Sono.